sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A luz no meio da sala

As lembranças haviam sumido, ouvia um som embaçado, era quase um silêncio, tentava decifrar coisas que aquele rumor lembrasse,
dera de uma hora para outra de só ouvir... As pessoas eram as mesmas, faziam o de sempre, se a ignoravam era comum, mas algo diferente tinha acontecido. Soprou devagar o dorso da mão, sim, havia sensibilidade. Seus olhos foram lambendo os lugares, cada detalhe lhe demorava uma vida, as sombras produziam formas que nunca tinha visto antes, sua atenção estava num estado de prontidão real e imediata, tudo seria criado a partir de agora, o mundo estava começando, e era belo, teria que acostumar com aquele rumor, aquele vazio, aquele silêncio. Não, seria diferente, não acostumaria, só assim poderia enxergar e criar tantas coisas, o prazer que sentia tudo fresco, novo, mais intenso: as cores, as formas, o gosto, o contato, os sons. Bastava mudar a direção do olhar e configurava uma nova possibilidade criativa, estava com uma satisfação tão grande e se perguntava se precisava de tantas coisas, tinha as por perto na casa, dava para vivenciar muitas vidas realizando imaginações, compunha misturando sombras e elementos reais, aqueles quadros logo eram suprimidos por outros já que os sons e a luz eram naturais e mutáveis, o dia é infinitas composições, o sol em movimento, as coisas, sim, ficavam paradas esperando estáticas pela intervenção do cosmo, um cenário perfeito.  A impressão do espetáculo, os técnicos subindo e descendo escadas, ajustando as luzes, trocando as gelatinas, afinando, suando, preparando... A diferença é que se podia interferir, interagir, acontecia de diferentes formatos, nada era definitivo, ia se fazendo, modificando de acordo com a luz que entrava na sala.
 Quase na hora do almoço ligou o rádio, estava tocando Arnaldo Antunes, ‘’A casa é sua’’. Fechou os olhos e dançou com tudo que tinha de corpo, ocupou o pequeno espaço da cozinha, engolia todas as palavras da música, a voz, tudo sensações... Dentro e fora. Ao abrir os olhos a composição anterior na sala já não era, o sol tinha subido, restava uma sombra, nem uma fresta, tudo ali parado esperando por ela e o sol, o barulho tinha mudado, agora se houve até buzinas. Lavou as mãos, catou o feijão, colocou já com tempero para cozinhar, o arroz é ensopadinho, omelete acebolado, salada de pepino descascadinho, repolho refogado e para sobremesa uma salada de frutas refrescantes, está um calor danado. As coisas foram ficando gostosas, o dia foi passando assim como quem quer cheiro no cangote até a nuvem em forma de coração virar um tubarão faminto tentando pegar um passarinho que acabou de cruzar o céu na maior tranquilidade.

Helena Soares - BH - 03\01\2014

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