sábado, 5 de abril de 2014

Escritas vindas de longe

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“O existir já é uma escrita”.
  Helena Soares veio ao mundo pelas mãos de uma parteira, na zona rural de Brasília de Minas conhecida como Macaúbas, no sertão dos Gerais, “longe de tudo… um lugar encantador que ninguém conhece”. Esta filha de agricultores relembra com saudade a vida simples daqueles tempos: “A casa era grande, com portas pesadas, e tinha um terreiro branco ao redor. Minha mãe punha a gente para dormir cedo e ficava no meio do terreiro cantando, e meu pai, que era cabeça de folião, tocava e cantava junto. Eu fingia que dormia e olhava escondido pela janela. Era encantador, e a lua brilhava sob os beijos”, diz a autora, perdendo-se em outras lembranças.
 Possivelmente as sonoridades daquelas noites ecoaram como reminiscências em seus ofícios de dançarina, performer e atriz, onde o movimento e o ritmo são essenciais. “Na verdade, preciso do movimento com o corpo para funcionar bem nas coisas. Então ouço música, danço, leio em voz alta, cozinho, depois escrevo”. As letras sempre a acompanharam, enquanto mudava de cidade em cidade para estudar e encontrar outras oportunidades de expressão artística, até se estabelecer em Montes Claros, nos anos 80, onde integrou o grupo de literatura e teatro Transa Poética, participando ativamente das atividades culturais do lugar.
  Alguns anos depois ela se mudou para Belo Horizonte, com a intenção de se dedicar às artes cênicas com “a escrita sempre me acompanhando, embora tenha me dedicado mais ao estudo e prática do teatro”. Estudou no Teatro Universitário da UFMG, onde entrou em contato com intelectuais, artistas e escritores. “Um deles foi meu professor, Ítalo Mudado, um apaixonado por literatura, que me apresentou Pirandello e outros autores”, configurando suas influências nas artes poéticas e nas outras também. 
  Caracteriza seu processo na escrita como uma sucessão entre observação e acumulação, onde ideia e informações podem ficar por dias “fluindo na cabeça, tentando se organizar…”. Embora diga não ter regras definidas, observa que costuma “… escrever e ler várias vezes para ver o que acrescento e o que tenho que cortar. Escrevo no caderno a mão, rabisco, reescrevo antes de digitar, mas, mesmo depois de digitado, ainda faço modificações. Gosto da genética da escrita”. E complementa: “vivo numa interação constante com esse lugar que me cabe, às vezes sim, às vezes não. O existir já é uma escrita”.

Artes a poetrizar

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“A palavra não é só a grafia, é antes o desejo de ser, existir”
A autora, que em um de seus poemas se anuncia como poetriz, se impregna de todas as artes que pratica. Helena Soares é atriz, poeta, performer, diretora e professora de teatro, formada em artes cênicas pelo Teatro Universitário da UFMG. Esta mineira do Norte do Estado lançou Infrutescência, seu primeiro livro de poesia, em 2006. A poética desta obra foi também transformada em espetáculo teatral de mesmo nome no ano seguinte, tendo esta criação, participado de mostras e leituras poéticas: como espetáculo e como escritura.
Helena Soares é também integrante e diretora da Cia.h3 de Teatro, Poesia e Outras Liberdades, onde apresenta sua poética pessoal e sua linguagem performática. Talvez por isso a autora prefira não definir um estilo para suas obras ”Isso de definir é estranho… Sou tão mutante. Definir parece ficar”, diz, completando a observação com a certeza de que prefere “as poéticas livres”. Livre como quando criança se encantava com as letras dos pedaços rasgados de jornal onde seu pai trazia as compras vindas da cidade: “Achava bonito aquele tanto de letras juntas, inventava leituras, mas não era. Então pegava um carvão e rabiscava a parede, mas não era. Interpretava pessoas falando, mas não era. Eu queria Ser…”, inspira.

Entrevista com Helena Soares, nova autora da Editora Kazuá

 EDITORA KAZUÁ – Quando você se pegou pela primeira vez se expressando em escrita? O que você acha que a influenciou a preferir essa forma de expressão artística?
Onde eu nasci era longe de tudo. Meu pai, de vez em quando, ia a cavalo até a cidade (ele saía de manhãzinha e só chegava quase de noite) e o que comprava lá vinha embrulhado no jornal, que era jogado fora em pedaços rasgados. Eu pegava aqueles pedaços e ficava namorando as letras, tentando decifrá-las. Achava bonito aquele tanto de letras juntas, inventava leituras, mas não era. Então pegava um carvão e rabiscava a parede, mas não era.Interpretava pessoas falando, mas não era. Eu queria Ser… Achava que ser era uma coisa daquele jeito escrito, mas que também continha invenções de todas as formas; podia ser de tudo quanto é jeito, era demais expressivo: eu quero ser isto.
EK – Você nasceu onde? Vive onde? Já tinha alguém que escrevia em sua família, alguém de seus contatos?
Nasci em Macaúbas, na zona rural do Norte de Minas. Um lugar encantador que ninguém conhece. A água de lá é salobra; a de beber tinha que ir buscar longe, no lombo do burrinho, debaixo do sol quente, uma labuta. Mas era bonita a estrada de mato seco e poeira. A água era degustada com gratidão. A casa era grande, com portas pesadas e tinha um terreiro branco ao redor. Minha mãe punha a gente para dormir cedo e ficava no meio do terreiro cantando, e meu pai, que era cabeça de folião, tocava e cantava junto. Eu fingia que dormia e olhava escondido pela janela. Era encantador e a lua brilhava sob os beijos. Depois meu pai teve sorte e comprou uma fazendinha lá em Mangaí, entre Brasília de Minas e Januária. Lá passa o Córrego Carrapato, que nunca nos deixou na mão; nem que for um fiozinho de água na seca ele mantém jorrando. Um herói. Fizemos a mudança em carro de bois, em cantoria, numas estradas em que nunca tinha passado. Eu tinha 9 anos, percebia a mudança dentro e fora de mim. Outra casa, outras pessoas, outro vento, e o pé de manga coco que passou a ser meu lugar de ver e ser. Depois fui morar em Angicos de Minas (um povoado) para estudar. Primeiro fiquei na casa de minha avó, gostava de ir catar algodão com minhas tias; depois fui morar na casa de um primo e tudo ficou sem sentido. Minha mãe me ouviu e me levou para morar em Brasília de Minas com minhas irmãs, também para estudar. Tudo novo. Eu tinha vergonha, a cidade me oprimia, tudo era meio proibido; ter muitos modos, respeitos, deveres sem direitos a quase nada. Na biblioteca da escola nem todos entravam. As salas eram divididas por letras que determinavam classes sociais aceitas ou não: A – os riquinhos filhos de Dr. Fulano; B – os pobres que eram mais ou menos inteligentes e tinham notas boas e; C – os pobres coitados que vinham da zona rural e das periferias. Eu pensava muito desde pequena e sofria com injustiças. Ficava muito angustiada e escrevia; era um desabafo que logo era rasgado e jogado fora. Com o tempo me acostumei e ganhei a cidade com minha simpatia de sorriso largo. Entrei para o grupo de jovens, comecei a fazer teatro com José Edward e Ricardo César e montamos um grupo que encenava peças escritas e dirigidas por José Edward. Começamos a fazer eventos culturais na concha acústica uma vez por mês, onde tinha teatro, música, feira de artesanato e muitos amigos. Desse movimento cultural saiu uma coletânea da qual participei com um poema ingênuo. A cidade estava pequena, eu precisava seguir e fui para Montes Claros. No Conservatório Lorenzo Fernandes, fazendo educação artística, comecei a ter aulas de teatro com Liana Menezes. Ela me colocou em contato com os escritores Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst, Pina Bausch(bailarina). Entrei para o grupo de teatro Diga que não me conhece e montamos “Hoje é dia de Rock”, de José Vicente, na qual eu fazia a sonhadora Izabel e  “Os filhos de Kenedy”, na qualeu fazia a hippie, com direção de João Batista Costa.Mudamos a estética teatral de Montes Claros. Quando houve um esvaziamento, fui para o grupo de teatro e literatura Transa Poética. Encontrávamos-nos para fazer trabalhos corporais de yoga, ministrados por Renilson Durães, ler poesias de grandes poetas contemporâneos ou não, e a proposta era cada um trazer seus escritos e ler para os outros. Assim, comecei a ter coragem de mostrar meus escritos fui lapidando, me soltando, gostando e escrevendo cada vez mais. Ali, daquele grupo, surgiu o Psiu Poético, um festival de poesia que nos aproximava e alimentava de possibilidades com experimentos, exposições de poesias no salão, onde eram lidas, trocas com outros artistas, poetas e a comunidade. Depois fui estudar teatro em Belo Horizonte, no Teatro Universitário da UFMG, onde entrei em contato com intelectuais, artistas, escritores, um deles foi meu professor Ítalo Mudado, um apaixonado por literatura, que me apresentou Pirandello e outros autores. Então minhas influências foram se configurando e assim continuam, não só na poesia, mas em todas as artes. Meu pai estudou com professor particular, tem uma letra linda e sempre nos incentivou a estudar. Minha mãe gosta de ler e contar histórias; sempre reclamou que não tinha terminado o colegial porque os pais dela ficaram doentes e ela teve que cuidar deles. Sim, eles me incentivaram. Eu queria vencer o desafio do semianalfabetismo.
EK – O que te inspira e te impulsiona a escrever?
 A vida, a natureza do existir, as coisas, as cores, os objetos, o movimento, a respiração.Está tudo diante de nós, na nossa cara, e ainda se transforma o tempo todo para ficar menos monótono. Vivo numa interação constante com este lugar que me cabe, às vezes sim, às vezes não. O existir já é uma escrita. Quando escuto, engulo alimento que interage com outras experiências, minhas e de outros, para uma escrita em diálogo permanente com o cosmos.
EK – Como você define o seu estilo de escrita?
 Isso de definir é estranho.Sou tão mutante; definir parece ficar. Gosto de ser flexível, água corrente… Mas penso em poéticas livres.
EK – E seu processo de escrita? Tem horário certo ou não, anda com caderninho no bolso, como funciona isso?
 Vou acumulando, como faz a Trisha Brown (bailarina). Às vezes acontece de ficar por dias com várias informações observadas fluindo na cabeça, tentando organizar; às vezes acontece uma emergência e anoto.Não tenho regras definidas.O processo é de observação e acumulação mesmo. Depois, escrever e ler várias vezes para ver o que acrescento e o que tenho que cortar. Escrevo no caderno a mão, rabisco, reescrevo antes de digitar, mas mesmo depois de digitado ainda faço modificações. Gosto da genética da escrita.
EK – Quais autores a instigam e a inspiram na hora de escrever? Quais autores você lê? Outras artes, além da literatura, te inspiram para escrever?
 Na queda se cata o que se pode; o que fica é aquilo que te impulsiona, te possui, fortalece.Eu lia assim, o que me emprestavam, o que estava disponível naquele momento, e numa dessas caiu em minhas mãos o Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley; Eu, de Augusto dos Anjos;Soroco, sua mãe, sua filha, de Guimarães Rosa, e esses livros todos que se lia na escola.
Todas as outras artes me inspiram para escrever quando me tocam no fundo da alma, o teatro, a música, as artes plásticas, o cinema em especial me deixa de cabeça para baixo.
Os autores que gosto e me fortalecem são Clarisse Lispector, Artaud, Gorki, Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, Mário Quintana, Cora Coralina, Wilmar Silva, José Inácio, Marli Froes, Laís Eveline, Cecília Meireles, Shakespeare, Anton Tchecov, Pirandello, Manuel de Barros etc.
EK – O que os leitores podem encontrar no teu livro? Do que ele trata?
 Este livro é uma reunião de textos como se fossem vários livros dentro de um só; ele é um desejo de expandir sentidos por meio da palavra, que ao ser lida, modifica-se pelo poder das experiências pessoais. O leitor vai se identificar com aquilo que nos é comum: a vida e a morte.
EK – O que te atraiu no trabalho da Editora Kazuá para você publicar seu livro conosco?
 Foi o contato direto, o fato de ter me ligado para conversar, querer pensar e estudar a obra e o escritor antes de publicar. Esse cuidado com o autor e sua obra nos coloca num lugar sensível e confortável, visto que as vulnerabilidades são muitas.

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